Fernando Relvas, um talento e um humor imortais

Encontrei o Fernando Relvas pela última vez no passado dia 28 de Outubro de 2017, quando foi inaugurada na Galeria Artur Bual a exposição Fernando Relvas: retrospetiva/outra perspetiva, e onde fui propositadamente para dar um abraço a este amigo de juventude que não encontrava há mais de trinta anos. Ainda bem que aproveitei a oportunidade porque não imaginava, mas seria a última.
Depois de uma época em que conviviamos diariamente nos tempos de estudante dos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril, nomeadamente nos cafés como o Pigalle ou as Minabela da Mina e da Reboleira onde passávamos boa parte do nosso muito tempo livre, naquelas idades o tempo passava mais devagar e o tempo livre parecia durar uma eternidade, em que o Relvas se distinguia pelo enorme talento e mesmo paixão pelo desenho e pela banda desenhada em que haveria depois de fazer carreira, tinha-o encontrado pela última vez em 1984, quando nos cruzámos fortuitamente numa rua de Lisboa.
Por saber que eu tinha acabado o curso e entrado para a IBM, o Relvas bombardeou-me com perguntas sobre a verosimilhança tecnológica de uma ideia que andava a magicar para um dos personagens que criava para as suas histórias, na altura já era um autor de banda desenhada consagrado e publicado, um computador tão portátil que podia ser transportado na mão pelo personagem, um espião, com o qual ele podia comunicar com a agência. Hoje em dia o smartphone é a coisa mais banal do mundo. Mas em 1984 um computador era do tamanho de uma arca frigorífica, o disco ia do tamanho de uma máquina de lavar ao de um autocarro, o leitor de bandas magnéticas outra arca, e a comunicação com a central exigia linhas telefónicas ou circuitos dedicados, e a ideia do Relvas era quase delirante, de modo que não lhe consegui dar grande ajuda na concepção do aparelho que ele tinha sonhado. Mas o sonho visionário dele veio mesmo a concretizar-se, o que acrescenta a qualidade de visionário a todas aquelas por que se tornou notável ao longo da vida.
Na época em que conviviamos diariamente o Relvas desenhava abundantemente, mesmo no café, em guardanapos ou toalhas de papel, e há amigos que ainda têm preciosos exemplares dessa arte efémera que ele não se cansava de legar, e dava os seus primeiros passos para publicar banda desenhada.
Começou justamente em  1974 em fanzines, publicações de circulação muito restrita a apreciadores e conhecedores, como O Gorgulho, assim como jornais e revistas de circulação algo limitada como A Gazeta da Semana ou O Fungagá.
Em 1978 foi convidado para publicar na revista Tintin, a grande revista de banda desenhada de grande circulação que então se publicava em Portugal, e foi aí que se tornou um autor consagrado no país, com a sua obra O Espião Acácio, que cativou os leitores com o seu traço original e humor mordaz, e os amigos por reconhecerem nas personagens retratos de alguns deles, hábito que o acompanhou ao longo da sua obra.
Na revista Tintin seguiram-se obras como Viagem ao Centro da TerraRosa Delta Sem Saída, L123, Cevadilha Speed, Slow Motion e Kriz 3, em que abordou as mais variadas temáticas, da ficção científica ao thriller sub-urbano ao road-movie desenhado, sempre com o humor que lhe foi marca dominante e sempre explorando e experimentando novas técnicas e estilos.
Quando a revista Tintin fechou em 1982 passou a publicar no Se7e, um jornal dedicado às artes e espectáculo também de grande circulação, e onde de 1982 a 1988 viram o dia obras como Concerto para Oito Infantes e um Bastardo, Niuiork, SabinaAi, este chavalo seria tão barilo, se…, Sangue Violeta, Nunca Beijes a Sombra do Teu Destino ou Karlos Starkiller.
Durante este período foi convidado para expor no Salão de Angoulême de 1984, e no decorrer do salão foi convidado para publicar numa revista de grande renome mundial, a Metal Hurlant Aventures, participação que acabou por não se concretizar devido ao fecho prematuro da revista.
Foi exposto e galardoado inúmeras vezes, nomeadamente na sua Amadora-mãe em diversas edições do festival Amadora BD, e a sua obra é tão vasta que não cabe aqui percorrê-la e fez dele uma figura incontornável da cultura, genericamente, e da banda desenhada, especificamente, portuguesas, de um talento extraordinário, de uma permanente curiosidade e experimentação e inovação nos temas e nas técnicas, incluindo a digital, e uma referência inspiradora para a geração de autores que se lhe seguiu e quase todos os que estão actualmente no activo em Portugal.
E com o humor mordaz, corrosivo e sem contemplações a que nem ele próprio se permitiu escapar, nomeadamente ao desenvolver recentemente uma obra, The True Story of My Rebel Left Slipper, sobre o modo como os sintomas da doença de Parkinson de que era portador lhe iam afectando gradualmente a rotina diária.
E quando o reencontrei na inauguração da exposição retrospectiva na Galeria Artur Bual estava, de facto, num estado de grande debilidade física e anímica, incapaz de se deslocar sem apoio e muito mais debilitado do que eu, que no entanto sabia que ele estava doente, estava preparado para encontrar. Mas não deixou de comentar o seu estado de debilidade com o humor implacável que nunca largou desde jovem ao dizer-me, como se falasse de uma personagem de uma das suas aventuras desenhadas, "Fui apanhado...". Grande Relvas.
O seu final de vida não foi tranquilo e confortável como merecia. Afectado pela doença de Parkinson, passou os últimos anos num estado gradualmente agravado de debilidade, não apenas física mas também económica. Sabe-se agora, candidatou-se em 2015 à atribuição de um Subsídio de Mérito Cultural que lhe desse algum apoio na situação de carência económica em que a doença o deixou. Sabe-se que apesar de reunir as condições de elegibilidade para a atribuição, desde o reconhecido mérito cultural à situação de carência económica, o Ministério da Cultura deixou arrastar o processo sem lho atribuir. Sabe-se mesmo que, este humor nunca o largava mesmo quando incidia sobre os seus dramas pessoais, desabafava com amigos "Devem estar à espera que eu morra", e morreu mesmo sem o ver atribuído. Pior, não morreu da doença grave de que era portador mas de uma infecção hospitalar apanhada quando, pouco tempo depois da inauguração, teve que ser internado no Hospital Fernando Fonseca na sequência de uma queda. Decididamente, não foi tratado pelo país como mereceu.
O Relvas cresceu na Venteira, morava na zona da Praça da Igreja, viveu uma parte importante da sua vida e iniciou e desenvolveu uma parte muito importante da sua obra na Venteira e, depois de ter vivido alguns anos no estrangeiro, regressou à Venteira, onde morreu. Foi um venteirense ilustre, que atingiu níveis de excelência na obra a que se dedicou e projecção e reconhecimento nacionais e internacionais. Levou o nome da Venteira muito longe  muito alto. É um venteirense de que a Freguesia se deve orgulhar.
Por isso, o grupo do PSD na Assembleia de Freguesia da Venteira, que integro, decidiu levar à próxima reunião da assembleia um voto de pesar pelo seu falecimento e uma recomendação à Assembleia Municipal para incluir o seu nome na toponímia da cidade, preferencialmente na Freguesia da Venteira.

Obrigado, Relvas...

Actualização:
A Assembleia de Freguesia já foi realizada no passado dia 19 de Dezembro, e foi honrada com a presença de Anica Govedarica, ou Nina como lhe chamam os amigos, a viúva, ou companheira, do Fernando Relvas, a quem tinhamos endereçado um convite para estar presente.
Depois de termos lançado a todas as bancadas, sem resposta, o desafio de apresentar uma proposta conjunta para homenagear com a maior dignidade a memória do Fernando Relvas, acabámos por apresentar uma proposta nossa e, depois de verificar que a CDU também tinha apresentado uma proposta com a mesma orientação e teor semelhante, voltámos a convidar esta formação para apresentar conjuntamente connosco uma única proposta juntando as recomendações das nossas duas propostas, convite que foi aceite.
A proposta foi apresentada pelas duas bancadas e, depois de respeitado um minuto de silêncio pela Assembleia, foi, não apenas aprovada por unanimidade, mas também subscrita por todas as outras bancadas, demonstrando uma unanimidade total da Assembleia, e consequentemente da Freguesia que ela representa, no reconhecimento da memória da personalidade e da obra do Fernando Relvas.
Além do voto de pesar que foi aprovado, o Fernando Relvas terá uma placa em sua memória junto da casa onde viveu, e será incluído, se a Câmara Municipal Amadora aceitar como estamos convictos que aceitará a recomendação da Assembleia de Freguesia da Venteira, na toponímia da cidade, preferencialmente no território da Venteira.
Se os poderes instituídos não trataram o Relvas no seu fim de vida com a dignidade que ele e a sua obra mereceram, a Assembleia de Freguedia da Venteira prestou-lhe, em nome de toda a freguesia da Venteira, uma homenagem com a máxima dignidade.
Pessoalmente foi uma honra para nós, grupo de eleitos pelo PSD nesta Assembleia, termos contribuído de modo determinante para esta merecida homenagem, assim como uma prova gratificante de que os eleitos das diversas formações, quando movidos por valores superiores, são capazes de ultrapassar as suas diferenças de opinião, ideológicas ou partidárias, e colaborar para o bem comum da Freguesia e dos Fregueses. É esta a ética que nos move.

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